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PSICANÁLISE E CINEMA


Marcio Garrit - Psicanalista


Uma das coisas que mais vemos em nossos consultórios, são pacientes devastados por membros da família e ainda assim, cheios de culpa por não conseguirem perdoar os erros desses que os devastaram. Ou não tão raro, ou menos comum, são os que, seja por defesa ou coisa do tipo, desenvolvem bloqueios que impossibilitam a racionalização dos fatos, e com isso, criam “personagens/cenas” que nunca existiram para poder tentar viver um pouco melhor frente ao estrago que uma família tóxica pode provocar. Esse filme retrata literalmente isso!

Era uma vez um sonho, é um filme americano de 2020, distribuído pela Netflix, dirigido por Ron Howard, protagonizado por Gabriel Basso – J.D; sua avó – Glenn Close (que está fantástica); e sua mãe – Amy Adams. A sinopse do filme é razoavelmente simples e não demonstra grandes novidades. Trata-se de uma família, Vance, que vivendo em Ohio, no pós guerra, e se depara com inúmeras dificuldades, sendo a de convivência a pior de todas. A mãe de J.D é viciada em drogas e visivelmente perturbada. J.D cresce em meio a um relacionamento tóxico com a mãe, e demonstra ao longo do filme uma angústia muito presente na vida real e insuportavelmente corriqueira. É sobre essas relações que eu gostaria de falar mais um pouco com vocês.

Não é novidade a disseminação desse significante: Tóxico. Esse termo vem sendo utilizado, às vezes até exageradamente, para expor comportamentos afiançados pela nossa cultura, nada saudáveis e sem alteridade. O masculino tóxico, o feminino tóxico, relacionamentos tóxicos, etc. Podemos dizer que todas as relações onde um lado tem por finalidade oprimir o outro, e com uma certa justificação na moral cultural, podem ser definidos como tóxicos. E isso pode ser tão forte na nossa cultura que muitas pessoas, às vezes inconscientemente, buscam esse tipo de relação por acreditar que ter uma relação é isso! Ser oprimido(a). Vide mulheres que defendem comportamentos machistas ou homens que acreditam que para ser homem tem que ser antifeminista. A questão que esse filme traz, e por isso resolvi escrever um pouco sobre ele, é que há relações tóxicas também entre pessoas que culturalmente são vistas quase que como intocáveis. Dito de outra maneira, há mães tóxicas, pais tóxicos, irmãos tóxicos. A cultura cria as frases: “Instinto materno”; “Amor de mãe é sagrado.”; “Seu pai é seu herói.”; etc. E com isso dissemina uma certa “obrigação subjetiva de adoração”. A questão é que existem mães terríveis, devastadoras, pais abusadores e etc. O tóxico habita muitos lares! E nesse momento a cultura com sua moral não ajuda em nada, afinal, pai e mãe são sagrados.

Não à toa, Freud, já havia notado a importância da infância para a vida adulta. Segundo o criador da psicanálise, nós vivemos os restos da infância. O adulto doente nada mais é do que a criança mal tratada e abandonada, e é, segundo Ferenczi, essa criança escondida no adulto que atendemos em nossos consultórios. Essa criança, na maioria das vezes, é oprimida pelos próprios pais, irmãos e/ou parentes próximos. Isso, não deixando de registrar, que muita das vezes o pior abuso de todos é a negligência ou desamparo que esses pais provocam. Uma criança que fica à deriva de socorro, provavelmente, vai desenvolver traumas para toda uma vida. E é o que mais vemos em nossos consultórios.

Não bastando toda essa situação, o sujeito vitima desse tipo lamentável de criação, se depara com uma moral cultural que o obriga a santificar a família, a ponto até de jogar fora toda a sua vida pessoal. É o que vimos com o personagem J.D. e a relação com sua mãe. O filme tem um pano de fundo “coach lifestyle”, mas não vou me apegar a isso. Como dito anteriormente, é sobre a dinâmica da toxidade das relações que vamos continuar conversando.

A mãe de J.D., antes de invadir a vida dos filhos, foi invadida pela sua mãe. Isso mostra a dinâmica “bola de neve” que expõe nosso funcionamento subjetivo. Nós repetimos! O inconsciente repete, a pulsão repete, o neurótico repete, insiste e persiste. A perlaboração é possível, mas é um árduo caminho. E esse caminho exige uma ressignificação que se inicia de dentro pra fora. O trabalho interno consiste em se desalienar das figuras materna e paterna, além de conseguir vê-los como realmente são. Ou seja, pessoas normais, que erram e muito, as vezes sem querer, mas erram. E o mais importante: eles não são e nem nunca foram super-heróis. São incapazes disso. São humanos. Parece um pouco óbvio ou até bobo, se lido de forma superficial ou de má vontade. Mas esse trabalho pode demorar anos de análise para ser desenvolvido. A dificuldade crassa que se apresenta na clínica em relação ao “o que fazer com o quê eles fizeram comigo” demonstra o que acabei de escrever. E isso é, infelizmente, normal. A criança tem no adulto o seu porto seguro, sua referência absoluta. Erros, ausências, displicências, desamparos, desmentidos e violências, por mais mínimas que podem parecer ao adulto, para a criança pode ser o fim. E o trauma cobra a posteriori. E cobra moldando o adulto em uma forma que vai desnivelá-lo relevantemente, trazendo traços de caráter que no fundo, e muita das vezes, nada mais são que repetições dos traços desses pais. Essa mudança interna, não é fácil, mas não é impossível. Para isso temos “ferramentas” como as psicoterapias.

A outra parte dessa ressignificação, dita acima, é conseguir se desprender dos, literalmente, mandos da cultura. Cultura essa que insiste em dizer que pais e mães ou família são seres sagrados e intocados. NÃO!!! Sua mãe não é um ser sagrado e muito menos pais ou irmãos. Como dito e repito, eles erram! E há erros que não tem conserto. Você não tem obrigação de perdoar ninguém, seja lá quem for. É muito fácil para quem teve a sorte de nunca passar por um estupro, espancamento ou abandono em família, vir com um “balaio” lotado de frases que santificam a família e te obrigam a se submeter a uma dinâmica do perdão que pode ser impossível para muitos. Já atendi várias pessoas em sofrimento profundo por terem sido devastadas da pior maneira possível pela família, e ainda sim, se culpavam por não conseguirem amá-los e perdoá-los. Lembro da reação de todos esses analisandos quando pronunciava a seguinte frase: “Mas por que você tem que perdoar?” Os olhares se desviavam pra mim e em seus rostos eu via um semblante que mudava da dor para o alivio. A partir de agora, eles tinham a opção da não obrigação do perdão, e que há outras formas de lidar com tudo isso. Tal obrigação os paralisava. Às vezes, o caminho pode ser aceitar que esse familiar era/é um sujeito doente e infeliz, e que ficar ao redor dele(s) na busca de um final feliz e perfeito só paralisava mais e mais.

A melhor maneira de ilustrar o que eu estou querendo dizer, é a cena de J.D. com a mãe em crise devido as drogas. Ela sempre se deitava e estendia a mão para ele dizendo a frase que iria paralisá-lo para sempre: “Fica comigo.” J.D. se toca, após anos segurando aquela mão e responde: “Eu torço pela sua melhora, mas ficando aqui eu não estou salvando ninguém.” A partir disso, ele segue...

Se J.D. perdoou a mãe, não sei. Mas ele se desalienou, entendeu que não podia salvá-la, que não se salva ninguém, que mães podem ser tóxicas, que enxergar as pessoas como elas são dói, mas não é impossível, que seguir o manual da família sagrada mata, e que no final, a vida tem disso, alguns se salvam e outros não.

Fácil? Não! Tem receita pronta para resolver isso? Não! Mas não é impossível, procure ajuda.

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