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QUEDA LIVRE [A sociedade do 1]


Marcio Garrit - Psicanalista


De tempos em tempos lança-se um obra e com ela vários assuntos, as vezes nem tão novos assim, vem a tona como se nunca tivessem sido debatidos antes. Recentemente, tivemos o lançamento de um filme e um documentário na Netflix que levantaram as mesmas questões, porém, de ângulos diferentes, são eles: Rede de ódio e O dilema das redes, respectivamente. O primeiro trata-se de um filme polonês de 2020 do diretor Jan Komasa, nele levanta-se a temática do ódio, das fake news e do que se convencionou chamar de cancelamento, ou seja, um boicote virtual com o intuito de punir quem, um coletivo qualquer acha que merece ser punido. Sim, no virtual acontece assim, sem ética e sem lei. No segundo, um brilhante documentário, também de 2020, dirigido por Jeff Orlowski. O documentário mostra uma possível queda da democracia, ou a ilusão que temos dela, a partir das ferramentas, ou algoritmos, que as redes sociais usam para manipular e criar dependência nas pessoas. Nada de novo, como já dito, o que essas obras trazem. Pensadores como Harari já vem fazendo um trabalho brilhante com palestras e livros a respeito do assunto. Mas é óbvio que com isso não estou diminuindo a importância das obras, apenas apontando o “espanto”, desmesurado a meu ver, que muitos afirmaram que tiveram ao assistir tais obras. O que podemos tirar de positivo de tudo isso, é que quando coisas como essas acontecem, nos ajudam a falar mais e tentar trazer alguma importância real do que tal situação poderá nos proporcionar no futuro. Aproveito para convidar vc a assistir duas lives que fiz junto com a Psicanalista Cláudia Moraes, sobre a dependência que as redes sociais geram em nossas vidas, e que falaremos a partir de agora. (caso queira assistir as lives, PART.I e PART.II)

Decidi trazer para cá, aproveitando essa onda que evidencia a toxidade da era tecnológica, outra opção. Um episódio de 2016 de uma série que acredito que todos conheçam chamada Black mirror. O episódio em questão se chama Queda livre! Antes de qualquer coisa, caso você que está lendo isso agora não conheça essa série, peço que maratone a mesma o quanto antes. Há conteúdos imperdíveis ali, e muitos deles de uma profundidade imensa. O episódio em questão é o primeiro da primeira temporada. Dirigido por Joe Wright, premiado diretor de filmes belíssimos como O solista de 2009 e Orgulho e preconceito de 2006, e protagonizado por Bryce Dallas Howard com sua personagem ridiculamente caricata Lacie Pound. E sabe por que ela é ridiculamente caricata? Por que é real! Ta cheio de Lacies por ai nas redes, e ver algo como ela nas telas nos remete a nossa sociedade ridiculamente caricata, e isso dá um certo nervoso.

O episódio retrata uma sociedade, não muito diferente da nossa, no futuro onde todos se utilizam do seu celular para avaliar umas as outras. Essas avaliações tem a função de definir o acesso a que cada um terá na sociedade. Se você tiver uma nota abaixo de X, não poderá andar de avião ou freqüentar tal restaurante, por exemplo. Não precisa dizer o quanto as pessoas acabam por serem artificiais uma com as outras, pois no fim dependem excessivamente da aprovação de todos. Lacie, a personagem principal, dependendo de um financiamento para comprar um apartamento, e sem a pontuação mínima necessária para ter seu crédito aprovado, encontra a oportunidade de virar o jogo ao ser convidada para um casamento onde estariam inúmeras personalidades de nota altíssima. Ou seja, ela vê a oportunidade de ser mais artificial, fútil e desnecessária e com isso goza. Lacie vê a oportunidade de atuar com seu teatro de gracejos e bondades, e com isso receber boas avaliações para, a duras penas, ir galgando melhores lugares nessa sociedade distópica. É sobre isso que decidi falar um pouco: esse funcionamento caricato que os sujeitos adotam nas redes sociais, permeado de dependência excessiva, ódio e hipocrisia intensa.

A sociedade em que Lacie vive é uma metáfora perfeita da nossa. As pessoas postam tudo, não há limite do privado para o público. Todos precisam saber o que comemos, vestimos, onde passeamos, o que conquistamos, quem namoramos, o que enlutamos, o que fracassamos, o que conquistamos, etc. Esse excesso de prestação de contas (sem aspas mesmo!) é um sinal perturbador da nossa necessidade de receber algum reconhecimento do outro, assim como Lacie, precisamos daquelas estrelas (no nosso caso são likes, deslikes, corações, etc.) É importante deixar claro, que receber algo do outro faz parte da nossa estrutura psíquica, pois o sujeito é um sujeito de relações, sendo assim, não vive sem o laço social. O que se coloca em xeque são os excessos. E nesse caso, os excessos ficam marcados a partir do momento que necessitamos dessas aprovações para qualquer posicionamento na vida. Essas aprovações tomam o lugar de qualquer possibilidade de constituição de subjetividade, o Eu se dilui no mar de likes e deslikes que povoam a tela do celular. Assim como Lacie, perdemos a coragem de encarar o básico da constituição da vida que é o produto dos erros e acertos de nossas ações. Agimos, postamos, aguardamos de forma aflita o que vão achar, verificamos as reações dos outros que nem conhecemos direito e voltamos a postar. Mas postamos eternas representações dos likes e corações, pois o objetivo é ficar preso nessa quase relação digital. Somos a sociedade do quase?

Faz-se necessário um spoiler! Muitas coisas acontecem e Lacie é presa. Nesse momento ela perde toda classificação que tinha. Um sujeito sem likes, ou seja, um não sujeito. Na cadeia se aborrece com outro preso e começa a gritar, xingar e falar tudo que não podia antes com medo de perder estrelas/likes. Fala tudo que sente e é nítido que a partir daí nasce de novo. Talvez seja isso que precisemos.

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